segunda-feira, 20 de novembro de 2017

DEUSA EM NOVEMBRO


Acontece que Cecília apareceu em novembro e desapareceu em novembro. É hora de  Lembrar Cecília, a deusa. A qualificação parece exagerada? Foi a melhor que encontrei, depois de muito meditar sobre Cecília. As outras não servem para caracterizá-la bem. Mulher bela? Sim, foi mulher bela. Grande poeta? Claro, foi grande poeta. Mas foi principalmente.. deusa.

Pousou entre nós por um condescendência especial, guardando distância, serena, às vezes sorridente (ah, o sorriso olímpico de seus olhos verdes), mas quem disse que o sorrir dos deuses é promessa de comunhão com os homens? Decerto Cecília viveu a nossa vida, provou dos nossos pratos, deu aula a crianças, conheceu ministros em recepções, considerou o horário dos trens, assinou papéis. Fez de tudo que era necessário fazer para assumir aparentemente condição humana, com direito a carteira de identidade. Mas, se observássemos melhor, sentiríamos que tudo isso eram recursos periféricos, menos para dissimular sua exata natureza, do que para compatibilizar com ela nosso cotidiano pedestre.

Era uma deusa, disto estou convencido, e só não lhe confidenciei minha certeza porque certos mistérios não se revelam. Uma bela mulher é mais do que mulher. Um admirável poeta é mais do que poeta. Cecília Meireles foi as duas entidades e uma terceira, de explicação impossível. E em novembro veio, em novembro se foi. Deusa em novembro.


Carlos Drummond de Andrade, crônica “Deusa em novembro” (fragmento), publicada em 8/11/1969 no Jornal do Brasil.

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